quando ele a viu de verdade

O trem era barulhento e abafado, a ventania acalorada invadia as janelas abertas e fazia os cabelos dela balançarem, apesar da velocidade, em seus olhos, tudo percorria em câmera lenta. O rosto rígido virado para encarar a escuridão e as luzes ligadas no movimentar rápido do vagão balançante de um lado para o outro conforme seguia os trilhos, mas as mãos duras cruzadas em cima do seu colo não se mexiam, nem mesmo pelo remexer do trem. Quão concentrada estava olhando para fora, aquele vazio noturno, para o nada que percorria pelas montanhas amedrontadas e tristonhas. Era como se, de alguma forma, aquele vazio refletisse de volta para o seu olhar indiferente e inalcançável. Como um quadro antigo, estavam dois desconhecidos próximos e a paisagem andante. Os cabelos ainda dançavam, mas ela continuava petrificada. Ele não conseguia desviar o olhar, pela primeira vez, ela estava sendo contemplada.

Augusto lembrou de Marina falando sobre aquela maldita arqueira vampiresca mais cedo. 

“Ela era minha namorada antes de eu virar Sem.” 

“Um namoro de criança.” fez as contas e Marina deveria ter por volta de doze anos.

“Claro, crianças assustadas. A Marjo era uma luz da graça divina em meu coração.” não tinha nenhum sorriso ou expressão em seu rosto quando disse palavras tão bonitas. 

O devagar-acelarado, o vazio preenchido, a graça no escasso sentimento. Aquela imagem não saiu da cabeça de Augusto pelo resto da madrugada e no restante do dia seguinte. A mesquinha e irritante mulher parecia tão enigmática agora. Ele nunca se importou com o que poderia estar acontecendo em sua cabeça antes. Por que agora faria diferença?

Ele queria saber o que ela estava pensando, no que ela estaria sentindo agora, claro, se pudesse ter a dádiva de sentir. Como seriam as feições coradas e nervosas dela se o pegasse encarando com tanta atenção. Será que ela gritaria com ele? 

Mas ele olhava. Nunca tinha percebido as sardas em suas bochechas, quase da cor morena de sua pele. Seus cabelos ondulados que agora estavam mais ondulados, acostumados à soltura e a ventura daquele vento seco e abafado do dia, antes trançados no azul desbotado. Aquele velho vestido roxo quase preto, de flores por toda a estampa, ficava tão bem no seu corpo médio e imóvel. Daria um ar romântico ao seu perfil se não fosse tão rígida. As mangas um pouco bufantes, as pernas cobertas pela calça preta que ia até os tornozelos, as botas desgastadas com cadarços de cores diferentes diferentes, a mochila cheia que se mexia conforme os passos que ela dava, era a primeira vez que Augusto olhava para ela direito. 

Conflitante, proibido, duvidoso.

Até antes de o desastre todo ocorrer entre o acampamento, eles lutavam até cansar na beirada daquela estrada suja. Quantas vezes não socou o estômago dela pensando que ganharia a disputa e levou uma surra que sentiu seus ossos das pernas estalarem? 

— Algo errado? — Marina, sem tirar os olhos da pequena multidão dançante, quebrou o silêncio. 

Em um pequeno interior longe das grandes capitais, as pessoas podiam fingir felicidade. 

Felicidade. Que palavra estranha para dois forasteiros ignorantes e violentos.

Então, o rapaz com a pele queimada do Sol, tirou os olhos dela e encarou as danças que um dia foram consideradas culturais em alguma região daquele lugar que antes era o norte do país brasileiro. Hoje em dia, a alta classe ignora tudo aquilo que vem da história dos seus ancestrais. Talvez olhassem com emoção e falsa representatividade que tanto fingem pertencê-los se algum poderoso levantasse a canção das amazonas.

Ele lembrava daqueles contos sobre as Amazonas e Icamiabas, de como ele achava engraçado as Sem se comportarem como guerreiras. Quase. Guerreiras não são dominadas.

Os cabelos voando, o rosto dela perdido, como se estivesse guardando cada detalhe daqueles movimentos feitos por mulheres mais velhas.

Derrotado, olhou-a de novo, seus cabelos o atrapalharam um pouco, mas não podia deixar de analisá-la com certa curiosidade. 

Agora a música tocava, soando pela praça cheia de pessoas coloridas e com olhares desesperançosos.

E ela estava em sua frente, encostada na mureta olhando a multidão com pouco caso, com aquela indiferença de Sem que o irritava tanto. Ele queria tocar no seu cabelo de novo, do mesmo jeito que tocou quando ela pediu que ele desfizesse suas tranças. Queria trançá-los para desfazê-los incontáveis vezes. Até que ela o mandasse parar. 

Mas ele não pediu para fazer, e ela não estava interessada em pedir. 

Ela não o olhou de volta, ocupada demais pensando nas crianças mortas de olhos abertos, moscas em volta, aqueles olhos sem vida olhando para ela no meio daquele massacre. Os gritos. As bombas. O controle. Ela não o tinha percebido, muito menos as danças e músicas que choravam por misericórdia. Toadas que antes contemplavam, agora são súplicas de liberdade de vozes abandonadas.

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