— é verdade que tu tava doente?
— é, fiquei de cama e tudo.
— e tava doente de quê?
— era um resfriado só.
— pegou como?
silêncio.
— pegou como? — repetiu ao perceber que a pessoa se perdeu nos pensamentos.
— ah, como peguei?
— é.
— uma noite dessas, tava meio sereno.
— mas o que tu fez? não levou jaqueta?
— levei…
— e pegou como? chuviscou?
— não…
— x não tava contigo?
— tava.
— não soube se ficou doente.
— não ficou.
— o que será que rolou?
silêncio.
— tu não tá me contando tudo.
— tá! nos beijamos e eu fiquei doente.
riram.
— mentira.
— é sério.
— foi o quê? tipo, um beijo de alguém que gripou?
— não, acho que foi carinho demais pro meu imunológico.
— para. — gargalhou.
— tô te falando.
— ficou doente de amor?
— amor não, que horror.
— tá se apaixonando?
— credo.
— então ficou doente do quê?
— sei lá, de afeto. sabe quando tu não recebe muito afeto e aí quando tu recebe do nada tu fica meio assim?
— ficou doente de carência?
— é, doente de carência. — riu. — não posso?
— se fosse, tu tava assim até agora. carência não passa assim de uma hora pra outra.
— tá, se você acha.
— tô te falando.
— acha que é doente de quê, então?
ficaram em silêncio de novo.
— sua guarda baixou e seu imunológico não aguentou.
riu de ironia.
— tô mentindo?
— tá.
— fala sério. tu fechou os olhos quando beijou?
— quem não fecha os olhos quando beija?
— quem confia em fechar os olhos com alguém?
— eu, hein.
— então quer dizer que tu tá baixando a guarda, é?
— não tô. se eu melhorei da gripe, é porque não tô.
— tá, mas não é legal deixar ela baixar de vez em quando e receber carinho?
— não. isso é coisa de gente desesperada.
— afeto não é desespero.
— que seja. não tô doida ainda pra me humilhar pra qualquer um.
— afeto não é humilhação. por isso que tu ficou doente, o teu sistema imune já vê carinho como perigo.
suspiros.
— afeto aprisiona.
— não. afeto cura. não confunde as coisas.
— não tô com machucado pra ter cura.
— que complicação tu faz.
— imagina, deixo a guarda baixar, recebo afeto e depois termina. como fica isso?
— tu segue. a gente sempre aprende algo com os outros que passam. se for pra aprender sobre afeto, que seja.
— que exagero.
— x sabe?
— nunca vai saber, se puder.
— não acho que esse segredo dura muito.
— por que?
— porque afeto a gente não consegue reprimir.
— fala sério, é só uns beijinhos.
— e só beijo é afeto?
— sim, né?
— e os abraços?
— ah, mas só isso.
— e o carinho na cabeça?
— também, mas…
— e o sorriso quando vocês se veem?
— isso é afeto também?
— quando você chora e ficam silêncio, quando andam e estão sincronizados de algum modo ou quando você se preocupa se a pessoa escuta uma palavra que dá arrepios, ou quando chove e a pessoa não tem guarda-chuva, quando você não pega algum doce porque tem algo que a pessoa não gosta. isso não é afeto?
— tá. que seja. o que a gente reprime, então?
— o medo faz a gente guardar, mas isso acaba vindo naturalmente.
— bem, se o medo vem é porque dói.
— se a gente abre ou se deixa baixar a guarda, ficamos vulneráveis porque a outra pessoa vai saber do que gostamos e isso dá medo.
— tu acha que dá mais medo a outra pessoa saber mais do que gostamos do que não gostamos?
— sim, porque dá espaço pra que ela não as faça porque sabe que é importante pra gente.
— é, não vai rolar.
— mas se está te fazendo bem, por que não?
— porque dói quando acaba.
— mas faz parte. te dá coordenadas de como sarar. vai ser um outro você até lá. não é bonito?
— ser outro eu?
— crescer, modelar. tipo massinha.
— que horrível.
— tu que sabe. a medida que o afeto for dando beijinho nas tuas inseguranças, tu muda de pensamento.
— vou pensar no teu caso.

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